Sou contra o livre-mercado

invisible hand

“Ué, mas você não é anarquista?”

Sou. Mas nós não vivemos em uma anarquia. Nós vivemos num Estado, e um Estado bem capitalista. Ser libertário não é ser liberal.

Será mesmo que, num contexto de capitalismo selvagem, faz sentido falar em desregulamentação?

O capitalismo é baseado na escassez; se nada falta, ninguém compra. Na falta de necessidades reais, criam-se “necessidades” ilusórias. É por isso que somos levados a pensar em nós mesmos como a soma das nossas posses e, assim, querer mais e mais, para “sermos” mais e mais.

Nesse contexto, as pessoas tendem a acumular tudo o que podem, por medo de que algo lhes venha a faltar. Essa sanha acumuladora gera um modo de vida “cada um por si”, exacerbando o individualismo, o egoísmo, a falta de consideração com outrem (e com as coisas consideradas públicas) e alimentando a própria escassez, criando um círculo vicioso.

Não vejo como abolir o capital enquanto não for possível abolir o Estado. Enquanto as pessoas precisarem de um Estado que as impeça de agir de forma antissocial, enquanto estiverem presas à ilusão de que só são capazes de funcionar na base de recompensa e punição, enquanto elas próprias não estiverem dispostas a, por si sós, abrir mão de competir para cooperar, elas não estarão prontas para quebrar o círculo vicioso da escassez. Ainda que o capital em si saísse da jogada, seria só uma questão de tempo até algo similar tomar seu lugar.

Mas também não vejo como abolir o Estado sem abolir o capital. Porque, ao contrário do que os liberais gostariam que acreditássemos, não, o mercado não se regula sozinho. Vide a crise financeira mundial ainda recente. O mercado tende naturalmente à concentração da riqueza, à formação de monopólios, oligopólios, cartéis. A “mão invisível” não é isenta. Ela esmaga uns, levanta outros. Para mim isso é tão autoexplicativo, tão evidente, tão óbvio e ululante e demonstrado na prática que é até difícil de explicar.

Quanto mais poder de mercado se tem, mais poder de mercado se pode ter, porque se usa o que se tem para adquirir-se mais e mais. Uma empresa grande como a Coca-Cola pode impor que só entra no seu estabelecimento se você comprar o chopp Kaiser (que é dela) junto. Se você é dono de uma grande chopperia, talvez esse acordo não valha a pena, mas, se você é dono de um pequeno restaurante… começa a ficar difícil de conversar.

Se você é a Ambev, você pode contratar os distribuidores das suas bebidas com cláusula de exclusividade, isto é, proibindo os caras de distribuírem as bebidas de qualquer outra marca. E daí você vai mais longe e firma contratos desse tipo com todos os distribuidores que encontrar, deixando qualquer cervejaria que seja independente do grotesco “gigante de bebidas da América do Sul” sem distribuição a não ser que faça a sua própria, o que requer um investimento que, muitas vezes, uma empresa menor não é capaz de fazer.

A concorrência é logo comprada ou dizimada, o produtor se acomoda, e ao consumidor em breve resta o pior produto ou serviço pelo pior preço. Porque ou ele aceita esses termos, ou fica sem. E quanto mais essencial esse produto ou serviço for para a vida das pessoas (como luz ou água, por exemplo. Sim, água. Já viu o que o presidente da Nestlé falou a respeito?), melhor, porque daí nem mesmo a opção de ficar sem elas terão. Elas vão ter que se submeter, simples assim. E, nesse panorama de submissão ao poder do capital, o círculo vicioso da escassez se acelera e se agrava.

É verdade que o Estado, com suas regulações, também está à venda. Como sempre esteve, aliás. Como sempre estará, enquanto existir. Porque o Estado são pessoas, munidas com todo o poder de uma nação para satisfazer seus interesses particulares. Se não fosse assim, não haveria anarquistas no mundo.

Mas defender o fim ou diminuição do Estado em prol de um mercado endeusado, como se abrir mão dos parcos mecanismos de contenção da gula destruidora dos magnatas do mundo pudesse trazer qualquer coisa além da realização dos mais dantescos e distópicos cenários da ficção científica, ou é má-fé de quem só quer se aproveitar disso, ou é a insanidade apocalíptica de quem quer ver Roma queimar, ardam no fogo as vidas que tiverem que arder – e certamente arderão primeiro as que deveriam arder por último. Como de costume.

O capitalismo é anterior ao Estado dito Democrático de Direito e o Estado por si só é anterior ao capitalismo. Mas, juntos, eles formaram um amálgama podre que, a meu ver, não pode ser purgado senão em conjunto. São monstros que devem morrer abraçados para que não reste a nenhum o poder de resgatar o outro.