Como se fosse a primeira e a última

***Publicado originalmente na Revista Fórum, em 17 de abril de 2016.

julgamento

Um amigo meu me contou que o filho tem enrolado muito para dormir. Deita, daí pede para ir ao banheiro (onde não faz nada), daí pede um lanche, daí pede água, daí pede história, daí… tem pai ou mãe por aí que não saiba o que é isso?

Então que, outro dia, o menino, além de pedir a água, cuspiu a água e se molhou todo. Meu amigo ficou possesso. Como assim, cuspir a água de propósito, só para achar um jeito de sair do quarto?

No dia seguinte, contudo, descobriu que o menino tinha cuspido a água porque sentiu uma casquinha de feijão nela. Engasgou ou assustou, sabe-se lá. De qualquer forma, foi um acidente. Imagine a culpa desse pai (imagine você – eu infelizmente não preciso imaginar porque já agi assim também, e mais vezes do que gostaria).

Podemos agir defensivamente diante dessa culpa, nos escusando pela nossa precipitação, dizendo que “mas também, ele sempre faz coisas assim, eu ia pensar o quê?” (com base no que já passou) ou dizendo que “é bom para ele entender que eu não vou me deixar enganar se ele fizer” (com base no que poderá vir no futuro).

Essa postura me lembra a história de Pedro e o Lobo – a fábula de Esopo que adverte contra a mentira. Nela, um menino, Pedro, para se divertir, engana por duas vezes seguidas as pessoas de sua aldeia, gritando “Lobo! Lobo!” sem estar em perigo; quando o lobo de fato aparece, ninguém lhe dá ouvidos, porque ele mentiu antes.

O mesmo conto serve, de certa forma, para advertir pais e mães a não tolerarem comportamentos que considerem desagradáveis nas crianças, ou elas os repetirão para sempre. Que tem que “deixar se ferrar um pouco para aprender”. Alguém nunca ouviu isso?

É fácil culpar a criança pela injustiça que nós cometemos com ela nos respaldando em seu comportamento passado ou na expectativa de comportamento futuro, mas isso não tornará mais justa a nossa atitude, nem menor a violência que a criança percebe nela; só nos protegerá da percepção da nossa própria cagada pelo que realmente ela é: uma cagada.

Somos nós, ali, as pessoas com todo o poder. Somos nós, ali, para a criança, o exemplo e o referencial de justiça, amor, consideração.

Cabe a nós termos o compromisso de ver cada situação sem nos deixarmos levar pelo preconceito criado pelos antecedentes, ou seja, pelo que veio antes, ou o medo de criar precedentes, ou seja, pela presunção do que virá depois.

Afinal, que estímulo podemos ter para mudar se já nos rotularam de uma determinada forma? Que estímulo podemos ter para cooperar se já vão nos julgar com base nos momentos em que não cooperamos? Que estímulo podemos ter para melhorar se sempre estaremos à sombra de nossos piores momentos?

Similarmente, que estímulo podemos ter para sermos altruístas, para pensarmos também em outras pessoas, se nos tratam como se fazê-lo em relação a nós, se considerar o nosso ponto de vista, fosse “abrir uma perigosa exceção”, porque “se dá a mão, querem o braço” e “se fizer para ume pessoa, todes vão querer” e etc.?

É bom sim ter uma visão do todo, para enxergarmos padrões de comportamento e tendências (e não só das crianças, mas nossas também) e podermos pensar em soluções mais permanentes, mais satisfatórias para todas as pessoas envolvidas. Mas essa é uma análise muito mais difícil de se fazer no calor do momento, quando o que vigora é o cansaço, o sono, a frustração. Em situações assim, esse todo na verdade polui e pode nos levar a agir por impulso, com base em julgamentos imediatos, instantâneos e, claro, equivocados. E nos arrependeremos depois.

Assim, a culpa que sentimos dói, mas essa dor é benéfica e necessária. Vacinal. Não é que precisamos viver sob uma bigorna – todo mundo erra, todo mundo falha, somos seres humanos, afinal. É que essa dor é o que nos prevenirá contra repetirmos o nosso erro. Se fugirmos dela, acabaremos evitando também a responsabilidade pelos nossos atos e, assim, a oportunidade de mudança. A possibilidade de lembrar, no futuro, da importância de buscarmos a paciência de perguntar, de investigar, com coração e mente bem abertos.

E analisar cada situação como se fosse a primeira e a última.

“MAS ele é ótimo com as crianças”

ótimo com as crianças

***Publicado originalmente na Revista Fórum, em 16/03/2015.

Passo mal quando ouço isso.

Ele agride a mulher que é mãe des filhes dele. É ausente, não coopera, falta com seus compromissos. A violência dele, que assume inúmeras formas, talvez chegue até a ser física. A misoginia que ele exibe orgulhosamente não tem limites. MAS… ele é ótimo com as crianças, as pessoas dizem.

Como? Fico me perguntando.

Como ele pode ser ótimo com as crianças quando ele é um merda com a mãe delas?

Como ele pode ser ótimo com as crianças quando ele torna infeliz a pessoa que é a cuidadora principal delas?

Como ele pode ser ótimo com as crianças quando ele dá a elas o exemplo da violência dentro de suas próprias casas? Ensina a elas que dor faz parte de amor? Que brutalidade é paixão?

Como ele pode ser ótimo com as crianças quando repassa a elas o machismo de que homem não faz serviço doméstico, homem não cuida de criança, homem só usufrui?

Como ele pode ser ótimo com as crianças se ele só se relaciona com elas nos termos dele, quando ele quer e só para curtir e não para cuidar? Como ele pode ser ótimo com as crianças se, na hora que aperta, espera da mulher que ela sacrifique a carreira profissional e acadêmica dela, porque acha que isso é não é exigível dele?

Ele é “ótimo com as crianças” porque está relaxado, bem dormido e bem disposto. Trampinho que começa e acaba (e não 24h, afinal, isso é coisa de mulher, esse ser tão frágil e protegido pela sociedade), cervejinha com os amigos, chega e encontra comida na mesa, toma banho sem pressa, dorme a noite toda bem tranquilo, não lava um copo. Sem nem falar na exigência social ridiculamente menor em torno de ele “se cuidar” (leia-se, estar bonitinho de se olhar) enquanto ela assovia e chupa cana.

É fácil pagar de bonzão quando tem outra pessoa carregando o piano para você.

Não, mulher. Ele não é ótimo com as crianças. Porque, para ser ótimo com as crianças, ele teria que ser pelo menos razoável com você. Para ser ótimo com as crianças ele teria que se importar com elas a ponto de se importar com quem cuida delas. Para ser ótimo com as crianças ele teria que estar presente na vida delas além do momento que é conveniente para ele.

Ele não é ótimo com as crianças. Ele é ótimo com ele mesmo. E só.

Não caia nessa. Não cometa consigo mesma a violência de achar que o seu bem-estar é irrelevante. Não existe bom pai sem antes existir bom companheiro. Companheiro de equipe de cuidado des filhes, mesmo que não de relacionamento amoroso.

Quem quer participar da criação tem que participar por inteiro, não só na parte que fica bonita na fita.