Críticas

Foto: Jo Yong-Hak / Reuters

Recentemente, a entrevista da candidata à presidência pelo PCdoB, Manuela D’Avila, no programa Roda Viva reacendeu a discussão sobre a tendência, numa cultura machista, de que mulheres sejam mais interrompidas e tenham suas falas menos consideradas que homens.

É incrível a diferença de tratamento entre as falas de homens e mulheres na sociedade e ainda mais incrível o quanto ela passa despercebida no dia-a-dia. É a tal “cegueira do privilégio” – a gente tende a achar, por exemplo, que o nível de dificuldade que outras pessoas enfrentam para fazer algo é o mesmo que o nosso. E não é, como o episódio demonstrou. Para uma mulher falar em público, ela precisa estar muito mais bem preparada que um homem, precisa estar disposta a lidar com muito mais resistência e uma resistência muito mais agressiva do que aquela que um homem encontraria nas mesmas condições. Ela precisa ter resiliência para processar muito mais críticas e rejeições do que um homem.

E, claro, isso não se aplica só a privilégio de gênero. Se aplica a todas as esferas em que há opressão estrutural. Eu me lembro de uma situação em que uma pessoa que tinha transtorno bipolar pedia à outra que assumisse um compromisso por escrito, enquanto esta outra, revoltada e magoada, não entendia porque sua palavra não bastava. Faltava a esta a compreensão da vulnerabilidade de alguém que sofre de um transtorno mental, no sentido de sua credibilidade ser diminuída pelo preconceito capacitista em torno da doença a ponto de ela própria, sem um papel escrito e assinado em mãos, poder ser levada a duvidar de si mesma.

Então, é provável que, quanto menos privilégios você tenha na nossa sociedade, mais (e piores) críticas você terá enfrentado durante a sua vida. E é provável, além disso, que, porque essa relação entre privilégio e crítica é invisibilizada, tratada como não se existisse, você esteja mais vulnerável a essas críticas, porque nunca vai faltar gente para dizer que se você recebe mais críticas, é porque você “merece” mais críticas. Que o problema é você e não a opressão estrutural que se está fazendo de conta que não existe.

E isso me lembra de um tema sobre o qual eu venho refletindo há algum tempo, especialmente com o apoio dos Círculos da Confiança (grupos de prática de Fórum Brasil, algo de que já falei aqui e aqui): o tal “feedback” (o retorno, a opinião alheia sobre você, o que você faz, a crítica, basicamente, seja ela positiva ou negativa) e as muitas formas que já observei em mim de reagir a ele. Gostaria de exemplificar e explicar algumas aqui.

Vamos fazer de conta, para ilustrar, que eu sou chef de cozinha; que eu considere que tenho um dom para cozinhar, que é o que faço bem, que é a minha missão na vida, que o prazer que eu sinto cozinhando e vendo pessoas se deliciarem com o que eu faço é o que traz sentido à minha vida.

Daí, vem uma pessoa, come algo que eu preparei e diz:

“Nossa, que merda!”

Momento para absorver o choque.

Uma reação que me vem muito é a defensiva: “merda é você!”

Depois de anos e anos de porrada e muitos sapos de diversos tamanhos e variável toxicidade engolidos, a gente às vezes fica calejada e aprende a devolver a patada de imediato sem nem pensar, no reflexo mesmo. Dentro de mim, uma turba enfurecida me diz (e não exatamente sem motivo) que essa pessoa não tem consideração, nem educação, que absurdo, imagina, falar assim desse jeito, que desnecessário, nem deve ser verdade, vai ver ficou com inveja, imagina que ela iria falar assim se eu fosse um homem, etc.

Quando isso acontece, eu me fecho totalmente para a crítica da outra pessoa. Ataco a pessoa de quem ela partiu para me fazer acreditar que ela e a opinião dela não merecem a minha atenção porque, no fundo, eu sinto medo do que pode estar por detrás daquelas palavras.

Medo porque, se eu me permitir dar atenção a essa fala, eu posso, num dia particularmente ruim, ter uma outra reação, a de achar que eu sou uma merda. Que eu não faço nada certo – claro que ficou uma merda, como eu pude ser tão sem-noção de achar que qualquer coisa que eu fizesse pudesse ser boa? Que vergonha, meu deus, que horror, nunca mais vou cozinhar na minha vida, vou me enfiar num buraco e sumir!

Acho que, como cozinhar nessa história é a minha paixão, posso acabar me identificando com o que cozinho a ponto de ter dificuldade de separar o meu trabalho (algo que é mutável) do meu ser (no sentido de algo que eu não tenho como mudar a meu respeito), e acabar entendendo a valoração do meu trabalho como uma valoração de mim como um todo.

Também posso reagir pensando que o que eu faço é uma merda. Parece com o item anterior, mas é um pouco diferente, justamente porque não tem tanto a ver com quem eu sou, mas com a minha ideia da minha competência, do meu talento, da minha habilidade, do meu conhecimento para fazer o que eu faço. É como se houvesse em mim uma represa contendo a minha sensação de inadequação e a minha insegurança fosse um furo na muralha de contenção dessa represa e daí essa crítica fizesse a água jorrar por esse furo e ele se alargar até arrebentar o muro e tudo aquilo vir abaixo…

Já num dia bom, a minha reação pode ser a de lembrar que essa pessoa só pode falar daquilo que ela comeu. Ou seja, não apenas ela não está necessariamente falando de mim, mas também talvez nem esteja falando de toda a minha produção culinária, mas só desse prato que ela provou. É aquele prato que está uma merda. E quem sabe, dessa distância mais segura, em que a frase que foi dita não tem como me destruir como chef ou como ser humano, eu já posso ter a presença de perguntar “por quê?” e ouvir a resposta com uma curiosidade real. Ao invés de me sentir impotente e incapaz, apesar de um tanto mexida, eu adotaria, assim, uma postura de resolução de problemas, mais produtiva.

Talvez eu descubra que tem a ver com os ingredientes que usei naquele dia, ou com o gosto pessoal daquele indivíduo em particular. E talvez realmente a pessoa não tenha gostado do jeito que eu faço. E então posso refletir e fazer uma escolha informada sobre como agir com base nessa informação. Se vou querer atingir um novo segmento de mercado, se há mais coisas que eu posso e quero aprender. Se quero experimentar fazer diferente para atrair mais pessoas, ou pessoas diferentes.

Agora, num dia particularmente fantástico, costuma ser bem mais fácil para mim lembrar que uma opinião (inclusive a minha) é apenas uma opinião – e não uma verdade absoluta. E daí não existe ameaça na percepção da outra pessoa, tem só a informação que está sendo oferecida e o que quer que seja dito que eu não tenha como aproveitar bate no meu escudo de maravilhosidade intrínseca e vira aura de luz.

Nesse estado de graça, eu posso traduzir a mensagem por um simples “Essa pessoa aparentemente não gostou do prato que ela comeu.”

E como antes, posso perguntar o porquê e recolher mais dados que me podem ser úteis e fazer novas escolhas com base neles. Mas uma das escolhas que aparece muito nesse lugar iluminado é a de dizer “sinto muito, é o que eu tenho para o momento” e ficar em paz, na aceitação pura de mim, da outra pessoa, da minha culinária, do mundo e os passarinhos cantam, um arco-íris surge no céu e o sol sorri para nós de lá de cima.

E o que tudo isso tem a ver?

É que, às vezes, quando alguém nos faz uma crítica – e, como dito, críticas são algo tanto mais frequente quanto menor a quantidade de privilégios que se tem – temos a sensação de que estão tacando lama na gente.

Nós não controlamos o que outras pessoas fazem, assim como não controlamos o que elas pensam, nem o que sentimos diante disso – as feridas antigas cutucadas, os traumas reativados. Mas está sob o nosso controle a forma como agimos por isso.

Olhar para a gente, observar a forma como nos sentimos e como tendemos a reagir nessas situações nos ajuda a ter mais consciência dentro delas. E isso amplia nossa capacidade de escolha. Por exemplo, podemos garimpar a lama para ver se tem algo valioso ali no meio, uma informação que de fato nos ajude a viver melhor, fazer melhor o que queremos fazer. E talvez não encontremos nada de nosso proveito ali no meio e possamos desconsiderar o que foi dito com a segurança de que aquilo não nos serve. E podemos também, claro, decidir que vamos passar longe da lama e pronto, se isso é algo que conseguimos fazer em paz.

Se alguém resolver me criticar, seja da forma como for, pelo motivo que for (inclusive por preconceito) eu não tenho como mudar isso. À parte de militância, diálogo e ação possíveis, eu continuo fazendo parte de uma sociedade em que eu, neste momento, sofrerei mais críticas do que, no mínimo, metade da população mundial sofreria no meu lugar.

Mas eu posso trabalhar em mim a maneira como recebo essas críticas, para que, naquilo que for possível naquele momento, ainda que a intenção de quem as emite seja tóxica e destrutiva, elas não necessariamente me atinjam dessa forma.

Posso, ainda, além disso, quando eu própria for fazer uma crítica, observar o que me move a fazê-la e me indagar se eu a faria ainda que a pessoa criticada fosse outra pessoa, com privilégios que esta não possui.

Mais que isso, posso ter o cuidado de entregar o “ouro” que eu acredito que estou oferecendo com o mínimo de lama possível para facilitar o garimpo da outra pessoa, caso esta opte por fazê-lo (e caso eu realmente tenha a intenção de oferecer a ela algo que considero que lhe possa ser significativo e valioso).