Não fui eu que comecei

***Originalmente publicado na Revista Fórum, em 13 de janeiro de 2016.

smurf

Será?

Sentimos mais prontamente e profundamente a dor que é nossa. Isso é natural, porque a pele que sente é a nossa. É necessário um esforço para pensarmos em como outra pele, revestindo outra pessoa, pode receber o contato conosco, lembrarmos que, assim como há coisas que nos ferem e não ferem outras pessoas, há coisas que não nos ferem, mas podem ferir outras pessoas. Por isso, muitas vezes, machucamos a outrem sem sequer nos darmos conta e, depois, diante de sua reação violenta, nos espantamos, não compreendendo que se trata exatamente disso – uma reação, uma resposta a uma agressão que cometemos, ainda que inadvertidamente.

Por exemplo, a nossa cultura é tão acostumada com a promiscuidade entre as instituições seculares e a fé cristã que hoje é comum que seus símbolos sejam considerados neutros. Aparecem até nas nossas cédulas de dinheiro – colocaram lá no cantinho, como quem não quer nada: “deus seja louvado”. Que deus é esse? Olorum? Alá? Zeus? Odin? Sabemos que não. Esse “deus”, inominado, único, masculino, é o deus dos cristãos, um deus que é tão subentendido como “O” deus na nossa sociedade que não precisa nem ser chamado pelo nome para que saibamos exatamente que é a ele que as pessoas estão se referindo.

Esse deus, apesar de excludente e marginalizador de outros deuses e invasor de espaços que nenhuma deidade deveria adentrar, não costuma ser visto assim pelas pessoas que o cultuam. Basta ver que o ‘pai nosso’ é considerado por muitas delas uma prece universal. Eu tenho um amigo, Cesão, que diz (muito corretamente, na minha opinião) que não é sequer uma oração terráquea, quanto mais universal.

Muitas pessoas nem sequer percebem essa imposição como violência. Como também não percebem o quanto a invisibilização, a ausência de representatividade, por si só, fere e exclui – e não é só em relação a religiões. Sempre que eu ajo como se só houvesse um grupo a ser considerado, ou como se um outro grupo não precisasse ser considerado, as pessoas que estão sendo desconsideradas podem, claro, sentir-se muito mal com isso. É como se elas fossem irrelevantes, como se elas não existissem… ou não devessem existir.

Voltando ao exemplo inicial, se uma pessoa cristã diz a alguém “deus te abençoe”, à primeira vista, ela só está desejando-lhe o bem. Mas, e se esse alguém for de uma religião não monoteísta? E se for uma pessoa ateia ou agnóstica? E se tiver sofrido perseguições terríveis a vida toda em nome desse deus que aparece nessa bênção tão bem-intencionada?

Talvez a menção a esse deus ative esses gatilhos emocionais. Talvez, ao ouvir a palavra “deus”, essa pessoa imediatamente se lembre de todas as vezes em que sua fé ou não fé foi desrespeitada, ignorada, demonizada ou ridicularizada. E, assim, talvez ela reaja com uma agressividade inesperada por quem a “abençoou”.

E aí? Ela é “casca de ferida”? Ela é “violenta”?

Eu acredito que não. Não quero dizer que isso justifique qualquer reação dela – afinal, uma opressão não justifica outra. Mas a indignação dela não é sem motivo. Não é “por nada”. Não é porque nós, pessoalmente, não nos ofendemos com alguma coisa, que ninguém mais se ofenderá com ela.

Sim, me faz bem (a mim, particularmente), apesar de ser agnóstica, ouvir em um “deus te abençoe” o sentimento de bem-querer, de cuidado, de carinho, por detrás dele e ignorar o “deus” que quis vir junto no pacote. Isso me ajuda a neutralizar o potencial de violência que essa expressão poderia ter para mim. Mas eu não vejo isso como um dever meu, ou algo que eu deva me forçar a fazer.

Eu consigo ver além das palavras, além do deus em nome do qual eu já fui agredida tantas vezes, o sentimento daquela pessoa – que me quer bem, não mal. No entanto, se eu tivesse passado pelas perseguições pelas quais outras pessoas passaram e passam, talvez eu não fosse capaz disso neste momento. Talvez nem quisesse um dia ser capaz disso. O que seria perfeitamente legítimo, me parece.

Tudo bem que eu não tenho como prever toda forma de interpretação daquilo que eu digo, mas eu não posso, partindo disso, desencanar e sair falando o que e como me der na telha, sem considerar as pessoas que aquelas palavras irão atingir. De que adianta falar se não importa a quem?

Não faz diferença se é desleixo, ignorância ou má-intenção; eu não posso simplesmente me isentar da minha responsabilidade em relação às consequências do que eu digo e faço para outras pessoas. Eu não posso incumbi-las de buscarem meus reais sentimentos nas minhas palavras, especialmente se eu própria não me esforço por levar os sentimentos delas em consideração quando me expresso.

Não basta falar “deus te abençoe” e simplesmente esperar que a pessoa entenda as coisas boas que estou emanando para ela com aquela expressão naquele momento. O interessante seria eu sair do meu umbigo e pensar que talvez eu possa transmitir esses bons sentimentos de outra forma, com palavras que não tenham o potencial de ofendê-la caso ela não consiga ignorar o “deus” que vai na frase. Por exemplo, por que não dizer, simplesmente, “boa sorte” ou “te desejo o melhor” ou “tudo de bom para você” ou coisa que o valha?

É fácil cobrarmos que outras pessoas superem traumas e violências que nós nunca sofremos, deslegitimarmos dores que nunca sentimos. O difícil é mantermos em mente que elas podem ter sofrido esses traumas e violências e nos esforçarmos para não feri-las quando somos capazes de evitar isso. O difícil é, diante da ira de outra pessoa, não reagirmos defensivamente, e nos abrirmos para aprender mais sobre a vivência dela, para nos tornarmos mais capazes de levá-la em consideração ao nos comunicarmos. Para entendermos melhor o que a pele dela sente.

Ninguém quer ser racista, machista, adultista, capacitista. Ninguém quer ser outrefóbice. Mas nós nascemos, crescemos e vivemos numa sociedade em que vigoram essas opressões, infelizmente. Assim, se nós participamos de um grupo opressor, a questão não é SE nós temos a opressão dentro da gente, mas O QUANTO dela está arraigada em nós e o que nós pretendemos fazer a respeito. Não podemos deixar o nosso “não querer ser” nos impedir de ver quem realmente somos. Porque não temos como desconstruir o que nos negamos a enxergar e reconhecer.

Intolerância

***Originalmente publicado na Revista Fórum, em 19 de novembro de 2015.

Vamos viajar um pouquinho.

Um triângulo sai à procura de algum lugar onde se encaixar e encontra uma série de buracos. Ele experimenta entrar num. Por sorte, os buracos são triangulares e ele entra perfeitamente; seus três cantinhos são aconchegados sem dificuldade e ele fica lá, feliz.

Logo chega um quadrado, também à procura de um encaixe. Ele vê o triângulo, vê os buracos. Tenta entrar num. Não consegue. Tenta de novo. Não consegue. Dói, fica incomodando, ele tem um cantinho a mais que não entra. O triângulo não entende o problema, afinal, ele não tem dificuldade alguma para se encaixar ali.

O quadrado tenta explicar que ele é diferente, que talvez o buraco precise de modificações para que ele consiga encaixar-se nele, mas o triângulo não quer saber, afinal, “somos todos formas geométricas” e, logo, se ele é capaz de caber, todo mundo também é, é só uma questão de tentar de verdade. De querer superar essas limitações. Para o triângulo, o quadrado está é de má-vontade e tem que penar muito para aprender a se encaixar nos buracos que encontra, ao invés de ficar de mimimi.

Raras vezes na minha vida encontrei algum indivíduo que realmente se julgasse no direito de receber um tratamento diferenciado. Ou seja, aquele cara que de fato sente que deve ser permitido a ele fazer o que não deve ser permitido a outras pessoas – quaisquer outras pessoas. Normalmente isso vem da compreensão de si mesmo como acima de todo o resto do mundo. Em uma palavra, megalomania (ou escrotidão).

O que vejo bastante é a hipocrisia mesmo – fazer de conta que se exige de si o mesmo que se exige de outrem, mantendo-se essa ilusão por meio de racionalizações e distorções que sustentem que “no meu caso é diferente”. Para mim, entretanto, essa ginástica mental toda demonstra precisamente que a pessoa não se considera acima das demais, já que, do contrário, a incoerência de exigir de outras o que ela própria não faz, ou condenar em outras o que ela própria faz, não seria incômoda a ponto de ela precisar ou esconder isso de si mesma ou tomar uma atitude para desfazê-la. E que atire a primeira pedra quem nunca.

Assim, essa coisa do “eu posso porque eu sou eu” não é algo com que nos deparamos todo dia (pelo menos não escancaradamente). O que encontramos, contudo, frequentemente, é uma variação estranha dela, uma espécie de megalomania coletiva: o indivíduo não se sente digno de tratamento diferenciado e especial por si só, mas, diluindo-se num todo, num grupo ao qual pertence, arroga para si, em detrimento de outro grupo, regalias que passa a ver como “naturais”.

É a sensação discriminadora de que um conjunto de pessoas, do qual se participa, pode fazer o que é proibido a outro, do qual não se participa: homens podem encher a cara, mulheres não; pessoas magras podem mostrar a barriga, pessoas gordas não; pessoas heterossexuais podem existir, pessoas não-heterossexuais não; pessoas brancas podem apresentar a copa do mundo, pessoas negras não; pessoas sem deficiência podem participar da sociedade, pessoas com deficiência não; pessoas adultas podem participar da sociedade, pessoas não-adultas não...

A discriminação se baseia no ver outra coletividade como merecedora de “menos” do que aquela em que se está, que é merecedora de “mais”. Menos o quê? Varia. Mas, normalmente, o pano de fundo é respeito e dignidade.

Não se trata apenas de falta de ver como pessoa, como ser humano – muita gente tem empatia até mesmo com animais de espécies muito distantes da nossa própria. É algo que vai além. É saber que se está causando mal estar e achar que tudo bem, porque é assim mesmo que tem que ser. Que essa é a ordem natural das coisas. Não é a falta de noção de “se não têm pão, que comam brioches”, mas o descaso intencional do “se não têm pão é porque não merecem comer”.

E é chocante o quanto posicionamentos assim se apoiam numa suposta igualdade, ainda por cima. Como o triangulozinho obtuso (não resisti ao trocadilho, desculpem) lá em cima, eles costumam demonstrar um raciocínio meritocrático que gira em torno de “se eu sou humane e me encaixo neste padrão, então todas as pessoas que são humanas podem se encaixar nesse mesmo padrão de alguma forma”. A falta de lógica sendo a de que quem se é não é somente um ser humano, mas O ser humano – o modelo de ser humano a ser seguido pelos demais seres humanos. E quem não se enquadra que se vire, porque “quem quer de verdade dá um jeito”. Mesmo que esse jeito passe por cima de quem de fato se é.

Esse é o pensamento que está na raiz da intolerância, da dificuldade de conviver com as diferenças, de aceitar quem não é (ou faz, sente, pensa…) igual a nós. Inclusive, é o que está também na ideia de que tem o nosso jeito e o jeito errado. Sem análise de contexto, sem recorte, sem consideração dos próprios privilégios (por exemplo, ter-se precisamente o formato certo para encaixar sem ter que se mutilar).

A intolerância, no fundo, é uma espécie de autoritarismo, que determina que aquilo que é diferente cesse de ser, seja por “adequação” (normalização) ou por exclusão.