Guerreira outra vez

Guerreira

Eu ouço.

E, simples assim, com uma só palavra sou roubada do meu cansaço, da minha sobrecarga. Da minha humanidade.

Guerreira. Abaixo a minha cabeça e volto a correr atrás do meu próprio rabo, tentando alcançar o ideal inatingível de produtividade e beleza que é posto diante de mim, como mulher.

Guerreira. Ralando e fazendo mil coisas ao mesmo tempo… com um sorriso no rosto.

Guerreira. Tenho que ser guerreira, como todas as que vieram antes de mim – mãe, avós, bisavós.

Guerreiras, todas elas. Guerreira, eu também.

Guerreira. E na competição em que eu aprendi a viver com as outras mulheres, não posso dizer que não tá bom, não posso reclamar, não posso fazer mimimi. Tenho que ser forte, tenho que dar conta, tenho que fazer e acontecer. Tenho que ser guerreira.

Guerreira. Guerreira não precisa de ajuda. Não pede apoio. Para que cooperação? Eu dou conta. Eu sou guerreira.

Mas eu não dou conta. Estou tão cansada. Quero relaxar, me divertir. Quero viver!

Xiu! silêncio, guerreira. Eles não podem descobrir. Ninguém pode saber. Abaixa a cabeça, morde a língua e vai à luta. Guerreira.

Chega! Chega.

Eu não sou guerreira. Sou uma mulher. Sou um ser humano.

Dói ter limites, mas dói ainda mais desrespeitar os meus limites.

Eu hoje escolho cuidar de mim.

Eu hoje escolho contar a minha verdade.

Porque ninguém neste mundo deveria ter que guerrear para merecer viver.

Enlutando

Hoje postei no insta falando da casquinha do machucado. De como dá vontade de arrancar a casquinha, porque a casquinha não deixa a gente esquecer do machucado. E de como arrancar a casquinha antes da hora só machuca mais.

Disse isso para me lembrar de ter paciência comigo. De aceitar minha dor e estar com ela, mesmo quando ela me torna lenta demais para o mundo ao meu redor. Aceitar as ondas que vêm e me viram de cabeça para baixo, de dentro para fora, no meio do dia, sem me deixar trabalhar. Ser produtiva.

Saí de uma reunião há pouco. Uma reunião de trabalho linda, com pessoas que adoro – Dani Rafael, Paula Rocha, Pedro Consorte. A equipe de organização da Comunidade Colar, um projeto muito especial, de que me orgulho muito de fazer parte. Saí porque a equipe me viu e chegou à conclusão de que eu precisava de tempo para lidar com o que estou sentindo.

E daí eu vim aqui digerir do meu jeito – escrevendo.

E eu queria escrever sobre todo o meu amor pela minha amiga que escolheu deixar de ser pessoa. Sobre como sinto muito. Sobre o choque de bater no portão da casa dela, ontem, ansiando por uma resposta, para ouvir de uma vizinha que “já não tem mais ninguém aí”. E então receber a notícia que meu coração lá no fundo já conhecia desde o momento em que minha última mensagem para ela ficou sem visualização por mais de um dia.

É a terceira vez que sinto esta dor. Esta dor muito particular que tem a ver com uma escolha desesperada feita por alguém próximo de mim. Uma escolha que eu mesma já fiz… mas sobrevivi. É uma dor com que eu trabalho, que eu conheço por dentro e por fora. E nem por isso ela dói menos. Nem por isso fica mais fácil aceitar o que eu queria que pudesse ter sido diferente. Mas fica a coceira em volta da casquinha. A vontade de arrancar logo. Analisar, racionalizar e estar pronta amanhã para fazer o que tem que ser feito. Ser produtiva.

Funcionar.

E agora eu sinto raiva. Tanta raiva. Tanta raiva.

Ontem uma pessoa me perguntou se minha amiga tinha se matado. E eu não soube o que dizer quando ouvi isso. Porque acho que sim, é isso que o IML diria. Mas dentro de mim o que me vem de dizer é que ela foi morta. Ela foi morta pelo racismo. Pelo capitalismo. Pelo machismo. Pela psicofobia.

Ela foi morta pela cultura que diz para uma moça bárbara, doce e brilhante de 31 anos que ela tem que “prestar para alguma coisa”. Que ela precisa “ser alguém na vida”. Que ela precisa ser produtiva. Funcionar.

A gente não é máquina mas é assim que a gente se trata, muitas vezes – um tratamento tanto mais duro quanto mais negra é a pele, quanto mais “feminino” se considera o corpo. Como se o propósito da nossa existência fosse “funcionar”. E, se a gente não “funciona”, se a gente é “inútil”, então para quê?

Eu não quero ouvir “coitadinha”. Eu não quero ouvir “pobrezinha”. Eu quero ouvir o que é que vai ser feito hoje, agora, para esse moedor de carne parar. Eu quero olhar para cada palavra e cada ato, meu e de outras pessoas, e pensar de que forma isso transforma ou desmantela a mensagem prevalente na nossa sociedade de que se “tem que servir para alguma coisa” para ter o direito de existir.

A existência da minha amiga era importante em si. Ela valia a pena por si mesma. Não precisava de nenhuma serventia.

Respiro. Choro. Respiro. Choro. Respiro e choro mais um pouco. Isso vem em ondas. Eu sei. Mas as ondas vêm mesmo assim.

E agora me dou conta do porquê de ter começado este texto falando da Colar e das pessoas com quem eu trabalho nela. A Colar é uma comunidade de prática de empatia e Comunicação Não Violenta. Uma comunidade de prática. E a prática começa na gente. No jeito que a gente se trata, se olha, se organiza. Não é papo, é vivência. É o real. É poder existir além da minha “função”, do meu “trabalho” da minha “serventia”. É sermos pessoas ao lado de pessoas, antes de qualquer outra coisa.

Estamos no nosso momento de maior correria – as inscrições se encerram amanhã, o ciclo de eventos começa na segunda, vai ter encontro de prática hoje à noite… Mas minha equipe de trabalho olhou o meu ser – humano – ali no quadradinho da tela do zoom e chegou à conclusão de que, se eu quisesse um tempo, era mais importante que eu tivesse esse tempo. E, simples assim, eu sou lembrada de que eu sou mais do que o que eu tenho a oferecer com meu trabalho, minha produtividade, meu funcionamento todo.

Eu existo.

É revolucionário, mágico e libertador poder fazer parte de algo assim e eu sou profundamente grata por isso. Conheci minha amiga por meio do meu trabalho com CNV. Queria que ela tivesse tido a chance de estar na Colar também.

Sinto muito, querida. Eu diria para você ir para a luz, mas para mim você foi sempre feita dela.

Fique em paz.

Constipação emocional

Irmão (3) e irmã (5) passeiam de mãos dadas depois de três dias de separação

Sabe quando você sente vontade de fazer cocô, mas não faz, e daí mais tarde a vontade não vem mais? Criança faz muito isso – não quer parar de brincar, daí não caga e daí não caga mais porque passou a vontade…

Quando meu filho tinha três anos, num acidente, um pedaço do dedo mínimo dele foi amputado. Na verdade, não foi bem uma amputação – ele desenluvou a última falange do dedo. Saiu voando a tampa do dedo, deixando exposta a ponta do osso. Imagine a cena.

Catamos as crianças (Igor, pai das crianças e meu companheiro, ainda teve a presença de procurar e encontrar o pedacinho que faltava enquanto eu colocava as crianças no carro) e corrermos. Chegando no hospital, ele ficou com a minha filha e foi cuidar da papelada; eu entrei com meu filho. Deitado na maca enquanto as pessoas colocavam um acesso na veia dele, ele não chorava. Parecia cansado, os olhinhos se movendo lentamente. Fui até o lado dele, acariciei o rostinho dele e disse: “Solta, filho. Eu estou aqui.” Ele olhou para mim e desengasgou o choro. Lembro da sensação de alívio desse momento. Foi como se ele tivesse voltado a respirar. Eu o abracei, sentindo os soluços dele na minha pele.

Seguiram-se três dias muito tensos. No pós-operatório, para garantir que o reimplante ia pegar, era preciso ficar colocando e tirando a mãozinha dele do gelo a cada xis minutos (não lembro quanto era), porque ela não podia nem esquentar, nem gelar. Noite e dia. Fora isso, tinha o trabalho de gerir o emocional do menininho estressado e irritado, com dor, incomodado, de saco cheio de estar lá, com saudades do pai e da irmã, de casa. Igor, enquanto isso, cuidava da minha filha, que também estava tensa e assustada, claro. Nós nos revezávamos como podíamos, mas, como o meu filho ainda mamava, eu ficava a maior parte do tempo com ele, especialmente à noite.

Quando finalmente saímos, lembro de andarmos pela rua, a exaustão pequena perto do alívio grande de estar lá fora, todo mundo junto de novo. Nosso pequeno núcleo famíliar havia sobrevivido ao trauma. Fazia sol e eu estava feliz.

Mas tinha alguma coisa… estranha em mim.

Não sei quanto tempo eu demorei para me tocar do que era. Aconteceu quando estava contando para uma amiga o que tinha ocorrido… e a minha voz tremeu, a garganta fechou e eu quis chorar. Ela apertou a minha mão e disse “tá tudo bem com ele agora.” E passou. De novo.

De novo.

E daí eu percebi. Desde o momento em que vi aquela ponta de osso na mão do meu filho aquela hora, eu não havia chorado. Não é que eu estava “segurando as pontas”. É que, dentro de mim, eu não estava no lugar de chorar. Eu estava no lugar de pegar no colo e correr para o carro, afivelar cintos, reassegurar, cuidar. Cuidar. Cuidar. Desde então, eu não tinha tido tempo nem espaço para me despedaçar um pouquinho. E daí, quando tudo ficou bem, era como se não fizesse mais sentido chorar por aquilo.

Só que o trauma – o chacoalhão, o susto, o medo, o cansaço, a tristeza de ver alguém que a gente ama sofrer, a impotência diante desse sofrimento, a raiva de não poder fazer nada além de cuidar… – ficou lá. Preso. Guardado. Encalacrado. Que nem um cocô que não pôde sair na hora que tentou e agora estava duro e ressecado demais para sair quando era conveniente que saísse.

Em 2019 morreu minha gata de 16 anos. Tuquinha. Em 2020, morreu a cachorrrinha Dora, que já tinha chegado bem idosa e doente na nossa casa. Em fevereiro deste 2021, pegamos um novo filhote para criar. Bom, não tanto pegamos quanto permitimos que ela ficasse, essa coisa de que gatos surgem na nossa vida quando precisamos deles, né?

Tabby, também conhecida como Tabbylina, Tabbycleide, Tabbyjane, Tabbyleuza, entre outros apelidos, é capaz de escalar a sirigueleira do quintal em menos de três segundos, é impiedosa e voraz predadora de passarinhos, a despeito da coleira barulhenta que colocamos nela, e literalmente sobe paredes. Foi a primeira vez que nossos filhotes humanos tiveram em casa um filhote de outra espécie com quem brincar. E foi encantador ver essa interação acontecer.

Acontece que, agora sabemos, Tabbymary, que não tem nem um ano, está morrendo também. De felv.

Merda.

Duas noites atrás, eu e Igor nos revezamos dando colo para duas crianças chorando. Duas crianças que, num espaço de dois anos, perderam dois bichinhos amados e sabem que vão perder ainda mais um muito em breve. Escutei e abracei enquanto elas iam de “preferia nunca ter pegado ela, mamãe” para “que bom que deu tempo de a gente conhecer ela” e “ela teve uma vida feliz aqui, né, mãe?” passando por muitos “eu não quero que ela morra.”

Eu também não. Mas aceito. Porque é o que me resta. Aceito e abraço as crianças que choram porque é o que eu sei fazer. É o que eu posso fazer. Aliás, muito do meu trabalho é acompanhar processos muito dolorosos de outras pessoas. E abrir espaço e estar junto na dor que não é minha é algo que eu faço – e que hoje percebo que sempre fiz – com relativa tranquilidade. Eu não consigo tricotear, não sei o que é patrimônio líquido, tenho que ler um tutorial toda vez que vou mexer em um app novo, mas isso eu consigo fazer.

O que é foda, percebi hoje, é que isso ativa em mim um lugar em que aquilo que eu estou sentindo e vivendo fica suspenso. Esperando. E que, depois, se eu não lembro de efetivamente ir lá buscar e dar espaço e esperar vir, é fácil esquecer e deixar tudo lá, suspenso. Eu também perdi minha companheira de 16 anos. Eu também perdi minha cachorra. Eu também vou perder a gatinha rajada que roubou nossos corações. E talvez o mais impactante: sou mãe de duas crianças que estão processando essas perdas e é muito foda acompanhar a dor de quem a gente ama e só poder fazer isso. Acompanhar.

E eu preciso lembrar de abrir espaço e reservar tempo para estar comigo também no meio de tudo isso. Porque eu também preciso de cuidado.

Eu também preciso lembrar não só de me dizer, mas também procurar quem me diga “solta. Eu estou aqui.” E soltar. Porque não precisa fazer sentido. Tudo bem se tudo já estiver bem. Ou se nada estiver bem também.

Seja como for, é importante soltar.

*** Agradeço às minhas colegas de clínica de caso, de Teoria U, Roze e Maria Thereza, e à minha amiga Analu, pelo apoio nessas descobertas.

MENINES, EU VI!

Foto: TV Globo

Eu fui ao ato ontem.

Sim, gente, eu fui. Eu vi aquele tanto de gente pedindo mais autoritarismo no dia 7 e senti que precisava ir lá dizer que não, para mim tá bom, obrigada. Ou melhor, que para mim bem menos autoritarismo ia bem, na real. Tipo nenhum, idealmente.

Mas, enfim, achei bom vir contar para vocês o que eu vi na Paulista ontem, porque foi realmente uma experiência surreal e eu não quero guardá-la só para mim. É tipo um sonho perturbador que a gente precisa exorcisar compartilhando com outrem. E parece ter sido um sonho mesmo, porque ninguém quer mostrar que aconteceu – não vi ninguém tirando foto. Todo mundo meio que com vergonha de estar ali, arrastando os pés e olhando para chão, sem graça. Constrangimento total.

Era uma vibe, assim… sabe quando você é jovenzinhe e está precisando muito, muito, muito dar uma trepadinha e tem alguém disponível, que também está precisando muito, muito, muito dar uma trepadinha e você e essa pessoa sentem exatamente zero tesão uma pela outra (se pá até abaixo de zero) e daí mesmo assim resolvem que vão se usar mutuamente para encontrar alívio momentâneo?

E daí, fica todo mundo cozóio fechado apertadinho, tentando se fixar no que está fantasiando lá na sua cabeça, tentando chegar logo no fim, mas a outra pessoa fica lá, fazendo os barulhinhos dela que te lembram que é ela quem está ali e você vai broxando, broxando, broxando… sabe? E ela também, porque você, cá do seu lado, também faz os seus barulhinhos…

Então. Foi assim.

Vamos aos suspiros e gemidos broxantes. Ao lado de um carro de um tal “Movimento da Direita Digital” que fazia piadas à la youtuber de minecraft (eu conheço porque tenho crianças que assistem, sim, eu deixo, me julguem) e depois falava coisas como “pelo Major Olimpio” (céus, céus), tinha um bando de gente com bandeiras da UMES e do PCdoB (ééééé, eu vi vocês) e um carro com um deputado discursando (não peguei o nome nem a sigla da pessoa, sinto muito, mas não precisa, é aquele discurso padrão, sabe? Que sai do nada e vai para lugar nenhum?) junto a bonecos infláveis de Lula e Bolsonaro abraçadinhos e bandeiras onde tremulava a face de Leonel Brizola. Tinha mais um carro com outro ómi (eu não vi mulheres discursando, tenho certeza que teve, não é possível que não tenha tido, só não fiquei a tempo de pegar) que falou umas paradas de funk, perguntou quem ali era da favela de verdade e terminou invocando Jesus.

Eu não entendo por que precisa ter carro de som com pessoa gritando coisas lá em cima. De boa, acredito que teria sido mais fácil para todo mundo gozar logo protestar se tivesse silêncio. Vi gente vendendo de tudo, mas não protetores auriculares. Teria feito toda a diferença.

Eu tentei, Pedro Doria, juro que tentei. Mas as pessoas têm essa dificuldade de se ater àquilo que viemos aqui fazer juntas. Tem essa vontade irresistível de fazer seus barulhinhos, gritar palavras de ordem xis. Até “Volta, Temer” eu tive que ouvir. Daí não dá.

Frustrada, desisti. Fugindo pela rua de trás para evitar ver e ouvir mais cubismos políticos, cruzei com três caras com bandeiras do PDT e rosas fake, com toda cara de quem estava se arrependendo de não ter trazido uma mochila em que enfiar as bandeiras e fingir que “protestar? não, imagina, vim só pegar um cineminha aqui perto”.

Tomei um banho longo para tentar esquecer mas estou até agora rescendendo a coxinha de mortadela, tentando encontrar sentido no que fiz e dizendo para mim que aprendi uma lição importante.

Só não sei ainda qual foi.

Nem o sangue a gente dá sozinha

Quando doei sangue pela primeira vez, há cerca de quinze anos, o fiz pela menos nobre das razões: queria folgar ao serviço.

Na saída, como se por punição, quase desmaiei. Foi uma comoção, minha pressão ficou baixíssima e me mantiveram lá pelo que pareceu uma eternidade até se assegurarem de que eu não iria desmaiar lá fora.

Eu estava me recuperando de uma das fases em que mais bebi na minha vida. Por cerca de cinco anos, eu havia bebido até passar mal quase todos os dias da semana (e boa parte dos finais de semana), muitas vezes até vomitar mesmo. Para mim, as pessoas ao meu redor, me cuidando naquele momento, me lembravam muito as pessoas sóbrias cuidando de mim enquanto eu estava “dando trabalho” bêbada. E eu dava bastante trabalho.

Saí com vergonha, mas com a doação feita e os meus dias de abono.

Na segunda vez, antes de ir me alimentei melhor, dormi melhor… mas foi pior. Comecei a passar mal já no meio da doação. Nova vergonha (sentimento a que estou habituada, reconheço sem muito orgulho) e finalmente a compreensão de que aquilo não era para mim.

Algum tempo depois (acho que foram uns três anos), uma das minhas irmãs teve uma complicação grave em uma cirurgia. É desesperador ver alguém que você ama no hospital sem poder fazer nada além de esperar – seja no sentido de aguardar, seja no sentido de ter esperança. Então, quando saiu a notícia de que precisávamos de doação para repor o que ela havia utilizado no banco de sangue, marchei para o hemocentro (outro) decidida a ser útil de alguma forma.

Mas não fui. Me lembro da enfermeira mexendo a agulha no meu braço, tentando reestabelecer o fluxo que o meu corpo – olha que esperto que ele é! – interrompeu por conta própria, enquanto eu suava frio, com ânsia de vômito. Parece que ele entra numas de “o que foi que essa louca aprontou agora? Melhor derrubar a pressão para conter essa hemorragia”. Sei lá.

Saí tão desolada que poderia ter sentado e chorado na calçada. Nem mesmo o pouco que eu havia dado poderia ser utilizado, porque era menos que o mínimo necessário para a doação. Ou seja, eu não apenas não havia ajudado, eu havia atrapalhado – gastando tempo e recursos para nada.

Daí, nesta semana, recebi a notícia de um conhecido querido que está internado, com pedido de doação de sangue.

Algo em mim me disse que poderia ser diferente. Eu agora tinha à minha disposição um arsenal de técnicas, mentalizações, visualizações. Eu consigo hoje manter a cabeça em situações que antes me tirariam completamente do eixo.

Com a agulha no braço, mentalizei uma fonte abundante. Agradeci ao meu corpo pelo seu cuidado comigo e avisei a ele que, naquele momento, isso não seria necessário, porque eu só estava dando o que não me faria falta. Que o que ia embora logo seria reposto e que tudo ficaria bem de qualquer forma. A fonte era abundante. A vida era abundante…

Senti minha pressão caindo rapidamente.

Não! Não, porra! A fonte é abundante caralho! Volta, volta, nãããããoooooooooo…

Reconheci a derrota quando começou a bater a ânsia de vômito. Já bastava desmaiar, só me faltava agora vomitar e nem conseguir limpar a minha própria sujeira. Avisei, em uma voz que já parecia distante, que minha pressão estava caindo.

Assim que consegui falar, pedi desculpas à enfermeira que estava ao meu lado, deitando a minha cadeira, colocando o bandeide no meu braço.

Não era nada demais, segundo ela. As pessoas desmaiam o tempo todo, algumas até vomitam. Mesmo as que doam sempre, nunca se sabe. Faz parte.

Perguntei se havia o bastante para aproveitar a minha doação. Ela disse que ainda não. Ainda? Me interessei pela palavra pequeninha ali no meio da frase dela.

Comecei a melhorar aos poucos. A enfermeira veio até mim e me perguntou se eu queria tentar de novo. Para completar os 280mL mínimos para fazer a doação, aproveitar o que eu tinha dado até ali.

Fiquei chocada. Posso?

Pode. A gente deixa você deitada para ver se assim você consegue.

E se eu passar mal de novo?

A gente interrompe de novo.

Assim, como se não fosse nada demais. Será que não era?

Senti uma coisa estranha… boa. Um alívio. Acolhimento, aceitação. Como um desamarrar no peito.

Concordei. A enfermeira e mais uma colega ficaram perto, monitorando. Quando nos aproximamos dos 280mL, elas iam avisando e comemorando a cada 10, hahaha. Daí, chegando na marca tão almejada, estava me sentindo tão bem que quis continuar. Elas interromperam em 320mL, dizendo que já “está bom de rebeldia por hoje”.

Enquanto eu aguardava minha recuperação (minha pressão demorou ainda um tanto para voltar ao normal), ela me disse para, da próxima vez, eu avisar para já começar a doação deitada.

É mesmo? Posso vir de novo?

Claro!

Mesmo dando esse tanto de trabalho?

Esse trabalho faz parte. É a nossa parte do trabalho.

Agradeci – por todo o cuidado, atenção, paciência e acolhimento – e vim embora. Foi uma vitória para mim, e foi uma vitória especial porque não foi só minha. Foi um esforço de equipe. Um trabalho coletivo. Sem o apoio das pessoas que estavam ali, eu teria perdido 100mL de sangue. Por conta do apoio delas, alguém vai receber 320. Alguém por quem, juntas, pudemos fazer mais do que só esperar e esperar.

Saindo dali, sentindo no meu peito meu coração bater mais aberto, entendi que o que mais me mudou ao longo desses dez anos não foram as ferramentas que eu adquiri. Foi aprender a pedir e receber apoio. Aprender a fazer parte de algo que não se resume só a mim. E o quanto isso me torna capaz de verdadeiramente apoiar outras pessoas.

O punitivismo e o pano

Eu não sou punitivista. E não sou punitivista não é porque tenho muito amor no meu coração. É porque eu não acredito em punição como forma de transformação de comportamento. Meu ou de qualquer outra pessoa.

A punição pode estancar o comportamento, mas não o transforma. Quem tem gato sabe do que eu estou falando.

Eu tinha um amigo que não deixava o gato deitar em cima do computador. Daí, quando ele chegava em casa, o gato não estava em cima do computador… mas o computador estava quente e coberto de pelos.

Quando você briga com o gato porque ele está fazendo algo que você não quer que ele faça, ele não entende “essa pessoa não gosta que eu faça isso.” Ele entende “essa pessoa não gosta de me ver fazendo isso.”

É isso que a punição faz. É esse o foco que ela nos convida a ter: “será que tem alguém olhando?”

Não é “como será que isso que estou fazendo impacta as pessoas e coisas ao meu redor?” Não é “o que será que isso significa no futuro da comunidade de que eu faço parte?” Não é “por que está importante para mim fazer isso? Será que há outras formas de cuidar do que é importante para mim sem fazer isso?”

É, simplesmente, “será que tem alguém me vendo? Será que tem como alguém provar que eu fiz isso? Será que vão me pegar? O que vão fazer comigo se me pegarem? Vale a pena?”

Ainda, a punição muitas vezes traz para quem a sofre a sensação de injustiça e a vontade de vingança, de revanche, o completo oposto da responsabilização que traria uma mudança real em seu comportamento. Assim, a punição estimula o ódio e o antagonismo, em vez da reflexão e cooperação.

Ela pode ser útil em dados momentos – provisoriamente, ao que me parece, mas pode. Mas ser útil não quer dizer ser necessária, ou mesmo inevitável. O fato de eu não conseguir agir de forma não punitiva em determinadas circunstâncias não quer dizer que isso não seja possível – quer dizer apenas que não foi possível para mim.

E isso não quer dizer que está certo ou que está errado agir punitivamente ou não. Quer dizer apenas que existem alternativas. E que elas normalmente atendem a propósitos diferentes. E que é bom eu saber qual é o meu propósito, para eu poder escolher conscientemente.

Quando eu falo de “passar pano” eu falo da postura que permite que condutas que ferem continuem sendo reiteradas, como se não ferissem ou como se as feridas que elas causassem não fossem relevantes.

E como eu faço isso? Eu faço isso quando deixo de expressar aquilo que me parece que fere ou pode ferir, e de que forma as ações que vejo estão relacionadas a essas feridas, especialmente as que são ancestrais e relacionadas a situações de desnível de poder devido à existência de opressões estruturais (racismo, machismo, LGBTQIAfobia, adultismo, capacitismo, psicofobia, etc.).

É o “mas tudo bem” ou o “nem foi tão grave” ou o “mas nesse caso…”, “mas ele/ela/eli é uma pessoa tão bacana, que fez x, y e z”, entre muitas outras opções, dentre as quais o clássico e retumbante silêncio.

Passar pano é problemático porque não traz consciência para esses comportamentos, impedindo a percepção do impacto deles e, assim, não possibilita que eles sejam reavaliados.

Agora, o que é “não passar pano”?

É dar voadora? Rachar? Cancelar? Lacrar?

Muito já se disse da cultura do lacre, da cultura do cancelamento, etc. A questão, para mim não é se está certo ou errado lacrar ou cancelar ou o que quer que seja. É entender o que eu – eu, Letícia – quero fazer quando faço isso. O que está importante para mim quando eu ajo dessa forma.

Porque se o que eu preciso é expressar a minha dor e a minha indignação e a minha revolta, se eu quero ser vista e ouvida e quero que o que eu penso e sinto seja reconhecido como válido, legítimo e importante, lacrar, cancelar, etc., pode ser um meio de me trazer isso.

Se eu quero expressar solidariedade, lealdade, cuidado, carinho por alguém que se viu violentade por outra pessoa em um contexto de desnível de poder, também esse pode ser um meio de me trazer isso.

Mas, se o que eu quero é prevenir a conduta de ocorrer novamente no futuro, eu não vejo em que o cancelamento, a lacração, a rachação, etc. me ajudam. Porque, na prática, funcionam como punição. E, como expliquei acima, eu não acredito na punição como forma de transformação real de comportamento.

Entre passar pano e voar no pescoço existem muitas possibilidades. Na hora de escolher entre elas, me ajuda saber o que está importante para mim no momento.

O “Palmeiras” da vergonha

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Não, não vai ser sobre futebol. Aliás, eu sei que se pá vou receber muitos comentários raivosos pelo título deste texto e peço desculpas por ele desde já, ok?

Acontece que, quando eu ainda acompanhava futebol, a impressão que eu tinha era a de que, por mais para baixo que meu time estivesse, o Palmeiras estava sempre pior.

Não estou falando para sacanear palmeirenses, tá? Eu sei que hoje a situação do time de vocês mudou muito e coisa e tal. Tenho um ponto aqui em que quero chegar, peço paciência, por favor.

Enfim, naquela época, quando eu ficava bodeada porque meu time estava zoado, eu pensava “bom, pelo menos eu não sou palmeirense”.

É, eu sei. Horrível dizer isso.

Então por que estou dizendo isso?

Porque eu sou o Palmeiras da vergonha.

Tipo, sabe naquele dia em que você dá uma bola fora tão, mas tão, mas tão fora que toda vez que você lembra você quer esconder a cara dentro da camisa?

Pois é.

Eu sou a pessoa em quem você pensa para dizer “bom, pelo menos eu não fiz que nem a Letícia”.

Não acredita? Pois eu vim compartilhar com vocês minha última vergonha, fresquinha, ocorrida ontem.

Acontece que, há alguns meses, eu li um livro que se chama Inner Work, de um psicanalista junguiano, o Robert A. Johnson. Ele ensina nesse livro a fazer um trabalho de interpretação de sonhos e de… imaginação ativa.

Daí, na imaginação ativa, tem uns exercícios de você entrar em um estado meditativo e conversar com partes de você dentro da sua cabeça, enquanto digita ou escreve narrando o que acontece. Para eu conseguir me desprender completamente da digitação, eu apago a tela e separo as falas dando enter, assim consigo me concentrar no que estou vivenciando.

É mágico. Sério.

Venho fazendo esses exercícios com regularidade e recomendo muito… com algumas ressalvas, que já veremos.

Pois bem. Estava eu fazendo uma sessão de imaginação ativa cujo conteúdo se tornou mais e mais erótico – pornográfico, na verdade. Incoerente, louco, desbragado e muito, mas muito obsceno. Sim, beijo grego e tudo o mais.

Enfim, quando terminei meu exercício, liguei de novo a tela e reparei que, no documento que eu tinha aberto, só tinha metade do exercício. “Estranho”, pensei comigo, “devo ter tocado no touchpad acidentalmente e saído do documento no meio da sessão sem perceber. Que pena”.

Nesse momento, observo que meu chrome está aberto. E que meu whatsapp web tem uma mensagem. De uma amiga que, junto comigo, participa de um trabalho voluntário, em uma equipe com mais doze outras pessoas.

E a mensagem da minha amiga é “Deus do céu, o que é isso no Slack?”

Você sabe o que é o slack? É uma ferramenta muito útil para organização do trabalho e troca de mensagens entre pessoas de uma mesma equipe como essa equipe do trabalho voluntário que eu faço com ela.

“Deus do céu, o que é isso no Slack?”

Meu coração parou, uma pedra de gelo no meu peito.

Alternei a aba e vi que o slack estava aberto e… sim, senhoras, senhores, e senhoris. Lá estava a metade faltante da minha imaginação ativa. Com todas as onomatopeias, gemidos escritos e pensamentos sórdidos – e erros de digitação.

Saí apagando cada comentário alucinadamente (eram muitos, porque as mensagens são enviadas simplesmente apertando enter e, como eu disse, eu aperto enter para alternar entre falas e ideias, porque a tela fica desligada). Apagar comentários no slack dá trabalho, tem que clicar em cima de um por um e escolher excluir, etc.

Terminei. Respirei. Avaliei minhas possibilidades.

Pedi desculpas, expliquei que se tratava de algo que eu fazia para relaxar e que sentia muito por tê-las submetido a isso (superpreocupada com eventuais triggers – gatilhos emocionais – que a minha sexualidade totalmente crua e exposta pudesse ter acionado).

Agora, a cereja no bolo: quando terminei e respirei fundo, vi que havia mais mensagens no meu whatsapp, no grupo desse trabalho voluntário (sim, temos um slack para o trabalho em si e um whatsapp para trocarmos fofuras). Suspirei e abri, pronta para ler o tamanho do estrago e explicar e pedir desculpas novamente.

Eis que encontro essas pessoas queridas ali, todas apavoradas, apagando o slack porque um hacker “certamente” invadiu a conta da Letícia.

E eu … … … “como é que eu não pensei nisso???”

Pois é, abiguinhes, eu saí tão alucinada para apagar o que estava no slack e apresentar uma explicação que nem vi que ali, no whatsapp mesmo, havia uma fresta por onde eu (e meu tesão desbragado e mal escrito) poderíamos ter nos esgueirado com nossa dignidade incólume.

Então, por que eu estou falando disso?

Por que, depois de todo esse vexame, trazer a público para passar ainda mais vergonha?

Porque eu aprendi expor a minha vergonha me ajuda a lidar com ela.

Não só escrever e falar sobre ela, mas expô-la.

Porque não é que ela vá embora, mas, de repente, parece que a gente tem companhia nela.

Porque, sim, sempre tem quem sai correndo como o diabo foge da cruz, com medo de passar vergonha por tabela (“você é amigue daquela pervertida?”)… mas também tem aquela pessoa que te procura aqui no cantinho, te dá um abraço e diz “obrigada!”

Eu nunca sei se o agradecimento é porque essa pessoa passou por algo similar ou se é porque agora ela pode pensar “bom, pelo menos eu não sou a Letícia”, hahaha.

Mas isso não importa. O que importa é que agora somos companheiras de vergonhas. E é muito bom ter companhia para sentir vergonha.

***

Segue o link para o resumo que fiz do Inner Work. Tá em português (zoado, mas legível). Recomendo.

Aqui, um modelo de tabela que pode ser usado para facilitar a intepretação de sonhos:

Advertência: se for fazer exercícios de imaginação ativa e usar um pc para isso… desliga a internet e fecha tudo antes de começar. Só por precaução. 😉

Um breve faz de conta

Topa?

Imagine uma nave espacial gigantesca, cheia de criaturas, e que há muitos e muitos asteroides à sua volta.

Para não bater em nenhum asteroide, a criatura-pilota precisa ficar o tempo todo na cadeira dela, pilotando.

A nave, como dito, é enorme. Então, como a pilota, que é a comandante da nave e cuidadora-mor de todas as coisas, pode dar conta da nave toda, ali de sua cadeira?

Porque há criaturas-mensageiras, que interfonam e mandam recados:

  • fogo na rebimboca da parafuseta de nitrogênio líquido de Xion-423! Sistema de arrefecimento, por favor!
  • borboletas voam lindamente no convés superior esquerdo, os casulos se romperam, está fazendo sucesso com as criaturinhas mais novas!
  • congelamento na ala oeste, em cima da sala de conexões zeta! Precisamos de cobertores urgentemente!
  • plantações hidropônicas a todo vapor na horta flutuante da ala norte, a irrigação está funcionando.
  • aproximação de naves desconhecidas 35 cliques à direita do cinturão de Velmo!

Só que, enquanto algumas mensageiras têm voz melodiosa, gostosa de ouvir, e às vezes aparecem para conversar calmamente, enquanto massageiam os pés e ombros da pilota, outras falam de um jeito que é difícil de entender, se comunicam aos berros e vira-e-mexe aparecem na sala de comando para gritar pessoalmente, quem sabe até chacoalhar a pilota.

(Sem nem falar do que acontece quando elas falam todas juntas e nem dá para entender o que está acontecendo onde e o que precisa ser feito.)

Às vezes, a pilota sente a tentação de desligar o interfone das mensageiras que lhe parecem menos agradáveis, e chamar seguranças para trancá-las em alguma sala bem distante na nave.

Só que fazer isso seria assumir um grande risco.

Afinal, quem iria cuidar do que elas estavam cuidando?

Além disso, parte da tripulação, por lealdade a essas criaturas às coisas de que elas cuidavam, pode passar a sistematicamente sabotar a pilota até que liberte e ouça quem ela prendeu.

Daí que o jeito mais fácil de a pilota lidar com as mensageiras é perceber que elas oferecem um presente – a consciência de algo importante que precisa ser cuidado na nave. Assim, elas todas, todas, do jeitinho que são, são preciosas e imprescindíveis não só para a sua sobrevivência, para toda a tripulação e para a nave também.

Elas todas são suas aliadas e suas amigas, ainda que às vezes seja tão difícil estar perto delas ou ouvir o que têm a dizer. Aliás, ouvir o que elas têm a dizer é a forma mais garantida de elas – e todo o resto da nave, na verdade – ficarem mais de boa, tornando mais fácil a convivência e cuidado de todo mundo.

Fim do faz de conta.

Agora, imagine que a nave e todas as criaturas da tripulação são você. Que a pilota é a sua consciência e que as mensageiras são suas emoções e sentimentos: alegria, raiva, medo, alívio, tristeza, contentamento, inveja, entusiasmo, culpa, prazer, vergonha, satisfação… e milhares de outras, cada uma diferente da outra. Todos cuidando de coisas que são importantes para você.

Por exemplo, talvez, num dado momento, seu medo cuide da sua segurança, ou sua inveja cuide da sua necessidade de reconhecimento e valorização, ou sua alegria cuide da sua diversão. Mas, enfim, sempre que aparecem em você estão trazendo notícias de algum pedaço seu que você não está olhando naquele momento – e que precisa da sua atenção.

Podemos, inclusive, pedir a ajuda de outras pessoas para conseguirmos ouvir melhor o que elas têm a dizer.

Quando damos as boas-vindas a todas as nossas criaturas mensageiras, sem ignorar ou prender e amordaçar as que não são fáceis de ouvir, ou que são difíceis de entender, conseguimos cuidar melhor da nossa nave e de toda a nossa tripulação.

A revolução é agora

paraisópolis

Imagem de Tuca Vieira

Paraisópolis, a maior favela de São Paulo, é vizinha do Morumbi, um dos bairros mais nobres da cidade.

Hoje ela se organiza para lidar com a epidemia de coronavírus sem contar com o apoio do governo.

Não sei como se dá exatamente a organização em Paraisópolis e a minha ideia aqui não é idealizar isso. É demonstrar que a necessidade – neste caso, trazida não apenas pela ausência do Estado, mas pela postura abertamente hostil deste – é a mãe da comunidade. Ela evidencia o quanto as pessoas dependem umas das outras, quer gostem disso ou não, e as força a trabalhar juntas.

Não é à toa que tanta gente branca e rica tenta formar comunidades e acaba em condomínios fechados ecologicamente corretos. Não digo isso com desdém. Digo como pessoa amarela e privilegiada que já inclusive viveu em uma “comunidade” assim.

Viver em comunidade me traz apoio. Estar junto, fazer junto. Mas requer que eu abra mão de um tanto da minha privacidade e muito do meu tempo e dedicação, e consiga navegar e lidar com os conflitos e desconfortos que vêm da convivência contínua com outras pessoas.

Assim, até duas semanas atrás, a comunidade exigia de mim mais do que eu tinha a ganhar com ela, simplesmente porque, na minha existência privilegiada, eu não dependia dela nem para sobreviver, nem para viver bem.

Até duas semanas atrás.

O mundo agora é um filme de ficção científica e eu não tenho mais como ignorar a concretude da interdependência em que eu vivo, mesmo anonimamente.

Desiludida – literalmente, porque livre da ilusão de independência e autossuficiência – me vi introspectiva, irritada com reuniões, aulas, trabalhos online. Era como se eu estivesse polindo os móveis em uma casa em chamas, ou varrendo aos redor das patas do elefante na sala. Parecia negação. (Me lembra muito a questão ambiental, aliás.)

Eu quero redescobrir o mundo em que eu agora vivo, reaprender a estar nele, e não manter a sensação de “normalidade”.

Aliás, não quero que as coisas voltem ao normal! O “normal” não estava mais dando conta fazia tempo já. Antes da epidemia de coronavírus, nós já tínhamos uma epidemia de suicídios de pessoas jovens no mundo. Mais que perspectiva de continuidade da nossa espécie, vem faltando sentido para a vida.

Temos a oportunidade de nos recobrar e refazer agora. A pandemia venceu a inércia, nos fez parar. Não só por fora, mas por dentro. A iminência da tragédia nos leva a pensar no que de fato é importante para nós em nossas vidas. Neste momento triste e assustador, temos a oportunidade de mudar de direção. De nos reconstruirmos construindo um mundo novo.

Porque há pessoas que não têm acesso a um computador, à internet. Há pessoas que não têm como fazer home office. Cuidar para que elas tenham como sobreviver nos próximos meses não é “dar o peixe em vez de ensinar a pescar”. É parar de fingir que elas algum dia tiveram acesso ao lago, a não ser quando pescam, limpam, cozinham e servem o peixe que outras pessoas vão comer.

E reconhecer que nós não existimos sem elas.

Vivemos em um país em que, em breve, não haverá só pessoas morrendo de covid-19, ou porque não conseguem hospitalização devido à ocupação de leitos por pessoas com covid-19. Haverá pessoas morrendo de fome.

Não é caridade, de favor, nobreza ou altruísmo. É questão de sobrevivência. Dependemos umes des outres. Não há número aceitável de mortes, nem por doença, nem por fome.

Não precisamos esperar que o Estado organize o cuidado que nós podemos assumir hoje, imediatamente. Já existem inúmeros grupos se formando por meio das redes sociais para facilitar a articulação entre pedidos e ofertas de apoio, dos mais variados tipos.

Também a quarentena pode ser mantida, ainda que sem o apoio do Estado, se houver adesão suficiente das pessoas, a exemplo do que ocorreria em uma greve geral.

A inação do Estado não precisa ser a nossa inação, assim como a ação do Estado precisa significar o fim da nossa, porque “ah, o governo já está cuidando disso”.

O Estado é algo que foi criado para a nossa conveniência. Não faz sentido nos submetermos ao seu governo quando ele não cuida de nós, seja individualmente ou como coletividade. E, se nós, em massa, não nos submetermos, não violentamente, não haverá ação possível que o Estado possa tomar contra nós.

Isso não significa – e menos ainda exclui! – exonerar o governo de sua obrigação com sua população, ou deixar de cobrar das grandes fortunas um reequilíbrio entre o que dão e o que tomam do restante do mundo.

É um chamado para irmos além daquilo que, tradicionalmente, consideramos política, para percebermos que, sim, a forma como agimos hoje com a pessoa que mora ao lado – seja no apartamento de luxo ou na favela atrás do muro – também é política e é muitas vezes mais real e eficaz, politicamente falando, do que debates acalorados sobre em quem votar na próxima eleição.

Meu convite é: arrisque-se a depender de outras pessoas e permitir que outras pessoas dependam de você. Veja o que acontece, perceba como se sente, no corpo, na alma. Perceba como se sente agora, lendo estas linhas. Tente identificar o porquê de se sentir assim. De que coisas importantes para você na sua vida esse sentimento te conta?

Vamos estar presentes, aqui e agora.

Revolução é mudança. Mais que tiro, porrada e bomba, precisamos de uma transformação social profunda, uma expansão da consciência individual e coletiva que impeça que tudo volte, rápida ou lentamente, ao “normal” que vem nos esmagando há tanto tempo.

Não precisamos de muito para isso. Uma rede de pessoas se apoiando, se vendo por inteiro, se abrindo para existirem juntas é suficientemente revolucionário.

Para fazer a revolução, hoje, não precisamos enfrentar a tropa de choque, mas o nosso medo de contar com outras pessoas… e de que elas contem conosco.

A quarentena divisora de águas

TWD_Dale

Cena de The Walking Dead, Temporada 2, Capítulo 11. Dale é o homem à direita, mais próximo da câmera.

Circulam pelos grupos de whatsapp mensagens lindas de apoio e ofertas de escuta, tendo em vista o impacto psíquico que o isolamento pode ter sobre nós.

Eu espero que, além de haver ofertas, haja cada vez mais quem as aceite. Infelizmente, nossa cultura não vê com bons olhos o precisar de ajuda. Todo mundo repete “olha, é normal precisar de ajuda, viu? Se você precisar eu estou aqui.”

Mas quantas pessoas dizem “eu estou precisando de ajuda”?

As pessoas pedem apoio para fazer as compras, para encontrar álcool gel…

Mas e para conversar? Desabafar? Falar sobre o que está acontecendo dentro delas?

Todo mundo precisa, gente. Sim, mesmo quem está “superbem”. Porque não é na hora em que você está hiperventilando e subindo no lustre que você procura apoio – a ideia é fazê-lo antes disso.

Nossa cultura tem uma tendência a não considerar a doença mental como doença.

Para muitas pessoas (especialmente as de mais idade) o isolamento pode ser fatal. Simples assim. Eu não sou a primeira pessoa a falar sobre o risco de aumento de suicídios neste momento – tanto pelo clima de ansiedade geral quanto pelo isolamento em si.

Tem um vídeo mostrando um bate-boca entre duas pessoas idosas, na Itália, que foram se sentar um pouco na praça, e um policial.

Eu acho muito natural a revolta diante de quem se nega a fazer algo – ficar em casa – que parece tão simples e tão importante neste momento. Tantas vidas dependem disso, de tantas formas diferentes, que parece uma falta de cuidado, de responsabilidade, de consideração. De humanidade, até.

E entendo que, quando a revolta é grande assim, a gente tem pouco espaço para olhar para a outra pessoa e imaginar o que está se passando dentro dela. 

O medo que quer negar a realidade.

A raiva de não ter controle sobre o que está acontecendo.

O desespero por respirar, por lembrar que existe um mundo lá fora, ouvir os pássaros, sentir o vento e o sol na pele. Liberdade.

Outro dia, um amigo me contou de uma senhora que foi a outro Estado visitar o filho que está no hospital. Sabendo do risco. Sabendo que, ao regressar, é possível – provável – que infecte a filha, que está no grupo de risco.

É um absurdo. É mesmo. Não faz o menor sentido. E, no entanto…

Que desespero que essa senhora deve sentir para, sabendo de tudo isso, mesmo assim ir até lá, né?

Me lembra de como já me aconteceu, algumas vezes, de estar em uma situação ruim em um lugar longe e de repente ter o pensamento irracional de que nunca mais vou ver a minha casa. E como isso às vezes me dá uma vontade de correr de volta imediatamente, não importa como. E como é difícil segurar isso, mesmo sendo só uma pontadinha, um pensamento, um quase nada.

E imaginei, como mãe, como deve ser pensar que você pode morrer sem ver seu filho outra vez. E isso parecer não uma pontadinha, um pensamento, um quase nada, mas algo a cada dia mais plausível, mais possível, mais verossímil. Eu sinto no peito um aperto imenso e uma vontade de correr e abraçar minhas crianças, agora, já, e nunca mais largar.

E de repente eu já não tenho mais raiva dessa senhora.

Tenho vontade de sentar e chorar com ela por este momento tão difícil e tão delicado em que nós duas – e tantas outras pessoas – existimos simultaneamente.

E encontrar junto com ela um caminho de cuidar desse coração apertado, desse sufoco dela, sem descuidar de outras pessoas. E talvez só essa companhia neste momento, ser vista e ouvida realmente, fosse suficiente para que ela conseguisse suportar mais algumas semanas de isolamento.

Estes são tempos de medo. E em tempos de medo a gente às vezes se deixa levar por qualquer coisa que nos prometa segurança. Fica faltando tempo e espaço para a empatia.

Mas é importante mantermos a nossa atenção não só na nossa sobrevivência, mas no mundo que vamos sobreviver para ver. Porque é agora, no presente, que nós participamos da construção desse mundo futuro.

Me lembra muito um episódio da segunda temporada de The Walking Dead, um seriado que trata de relações de poder, organização social e do diálogo indivíduo-coletividade usando, como pano de fundo, uma ficção baseada em um apocalipse zumbi.

[vai meio que rolar spoiler, mas não muito, especialmente considerando que isso foi ao ar em 2011, então já prescreveu, ok?]

Ocorre um dilema. Depois de um confronto, uma pessoa de um outro grupo, muito violento, é resgatada pelo grupo protagonista. É um garoto bem novinho. O grupo protagonista se divide. Metade dos personagens acha que a melhor solução é matar o garoto, simplesmente, porque não sentem que podem confiar nele o bastante para que ele possa ficar por ali mesmo e, agora que o garoto sabe onde eles estão, ele pode contar isso para o resto do outro grupo, colocando todo mundo em risco.

E então um dos personagens, Dale, faz uma colocação maravilhosa. Ele diz:
“O mundo que conhecíamos se foi. Mas manter a nossa humanidade? É uma escolha.” E, mais adiante, em outra cena: “Se fizermos isso, o mundo que conhecemos estará morto. E este novo mundo é feio, é bruto. É um mundo em que eu não quero viver. E acho que vocês também não.”

Esse vírus chegou no nosso país por meio das pessoas ricas, mas já sabemos que o maior impacto será, como de costume, entre as pessoas mais pobres.

O ministro da saúde ontem disse que prevê o colapso do sistema de saúde no final de abril e definiu o colapso como “O colapso é quando você pode ter o dinheiro, ter o plano de saúde e a ordem judicial, mas simplesmente não há o sistema para se tratar”.

E ficou para mim que só é colapso quando alguém que tem dinheiro, plano de saúde ou acesso à justiça não encontra tratamento. Gente pobre parindo no saguão ou aguardando atendimento deitado no chão do corredor do hospital não é colapso.

Em Mongaguá, diante da suspensão das visitas e saídas, centenas de pessoas fugiram do presídio, que já se encontrava em situação calamitosa antes mesmo das restrições impostas devido à epidemia do covid-19.

A notícia que tenho, de uma amiga que mora nessa cidade, é a de que a recaptura ocorreu, como de costume com relação a tudo o que envolve o cárcere neste país, com muito abuso.

O exército está se preparando para ir às ruas para fazer cumprir a quarentena. Garantirá, também, a distribuição de recursos, víveres, para que todas as pessoas possam sobreviver mesmo na quarentena? Ou apenas que elas tenham mais medo de buscar o acesso do que de passar fome em casa?

Qual será o objetivo do uso da força?

Este é um momento decisivo para a nossa sociedade. A suspensão de tantos aspectos culturais abre espaço para o questionamento de coisas sempre tidas como naturais e nunca revistas. Abre espaço para falarmos sobre renda mínima, saúde universal, coletividade.

Essa epidemia, terrível como vem sendo, pode nos distanciar ainda mais em decorrência de tudo o que temos de diferença… ou finalmente nos unir em torno de tudo o que temos em comum.

Só precisamos cuidar para que o nosso medo não nos prive da nossa humanidade.