Cena de The Walking Dead, Temporada 2, Capítulo 11. Dale é o homem à direita, mais próximo da câmera.
Circulam pelos grupos de whatsapp mensagens lindas de apoio e ofertas de escuta, tendo em vista o impacto psíquico que o isolamento pode ter sobre nós.
Eu espero que, além de haver ofertas, haja cada vez mais quem as aceite. Infelizmente, nossa cultura não vê com bons olhos o precisar de ajuda. Todo mundo repete “olha, é normal precisar de ajuda, viu? Se você precisar eu estou aqui.”
Mas quantas pessoas dizem “eu estou precisando de ajuda”?
As pessoas pedem apoio para fazer as compras, para encontrar álcool gel…
Mas e para conversar? Desabafar? Falar sobre o que está acontecendo dentro delas?
Todo mundo precisa, gente. Sim, mesmo quem está “superbem”. Porque não é na hora em que você está hiperventilando e subindo no lustre que você procura apoio – a ideia é fazê-lo antes disso.
Nossa cultura tem uma tendência a não considerar a doença mental como doença.
Para muitas pessoas (especialmente as de mais idade) o isolamento pode ser fatal. Simples assim. Eu não sou a primeira pessoa a falar sobre o risco de aumento de suicídios neste momento – tanto pelo clima de ansiedade geral quanto pelo isolamento em si.
Tem um vídeo mostrando um bate-boca entre duas pessoas idosas, na Itália, que foram se sentar um pouco na praça, e um policial.
Eu acho muito natural a revolta diante de quem se nega a fazer algo – ficar em casa – que parece tão simples e tão importante neste momento. Tantas vidas dependem disso, de tantas formas diferentes, que parece uma falta de cuidado, de responsabilidade, de consideração. De humanidade, até.
E entendo que, quando a revolta é grande assim, a gente tem pouco espaço para olhar para a outra pessoa e imaginar o que está se passando dentro dela.
O medo que quer negar a realidade.
A raiva de não ter controle sobre o que está acontecendo.
O desespero por respirar, por lembrar que existe um mundo lá fora, ouvir os pássaros, sentir o vento e o sol na pele. Liberdade.
Outro dia, um amigo me contou de uma senhora que foi a outro Estado visitar o filho que está no hospital. Sabendo do risco. Sabendo que, ao regressar, é possível – provável – que infecte a filha, que está no grupo de risco.
É um absurdo. É mesmo. Não faz o menor sentido. E, no entanto…
Que desespero que essa senhora deve sentir para, sabendo de tudo isso, mesmo assim ir até lá, né?
Me lembra de como já me aconteceu, algumas vezes, de estar em uma situação ruim em um lugar longe e de repente ter o pensamento irracional de que nunca mais vou ver a minha casa. E como isso às vezes me dá uma vontade de correr de volta imediatamente, não importa como. E como é difícil segurar isso, mesmo sendo só uma pontadinha, um pensamento, um quase nada.
E imaginei, como mãe, como deve ser pensar que você pode morrer sem ver seu filho outra vez. E isso parecer não uma pontadinha, um pensamento, um quase nada, mas algo a cada dia mais plausível, mais possível, mais verossímil. Eu sinto no peito um aperto imenso e uma vontade de correr e abraçar minhas crianças, agora, já, e nunca mais largar.
E de repente eu já não tenho mais raiva dessa senhora.
Tenho vontade de sentar e chorar com ela por este momento tão difícil e tão delicado em que nós duas – e tantas outras pessoas – existimos simultaneamente.
E encontrar junto com ela um caminho de cuidar desse coração apertado, desse sufoco dela, sem descuidar de outras pessoas. E talvez só essa companhia neste momento, ser vista e ouvida realmente, fosse suficiente para que ela conseguisse suportar mais algumas semanas de isolamento.
Estes são tempos de medo. E em tempos de medo a gente às vezes se deixa levar por qualquer coisa que nos prometa segurança. Fica faltando tempo e espaço para a empatia.
Mas é importante mantermos a nossa atenção não só na nossa sobrevivência, mas no mundo que vamos sobreviver para ver. Porque é agora, no presente, que nós participamos da construção desse mundo futuro.
Me lembra muito um episódio da segunda temporada de The Walking Dead, um seriado que trata de relações de poder, organização social e do diálogo indivíduo-coletividade usando, como pano de fundo, uma ficção baseada em um apocalipse zumbi.
[vai meio que rolar spoiler, mas não muito, especialmente considerando que isso foi ao ar em 2011, então já prescreveu, ok?]
Ocorre um dilema. Depois de um confronto, uma pessoa de um outro grupo, muito violento, é resgatada pelo grupo protagonista. É um garoto bem novinho. O grupo protagonista se divide. Metade dos personagens acha que a melhor solução é matar o garoto, simplesmente, porque não sentem que podem confiar nele o bastante para que ele possa ficar por ali mesmo e, agora que o garoto sabe onde eles estão, ele pode contar isso para o resto do outro grupo, colocando todo mundo em risco.
E então um dos personagens, Dale, faz uma colocação maravilhosa. Ele diz:
“O mundo que conhecíamos se foi. Mas manter a nossa humanidade? É uma escolha.” E, mais adiante, em outra cena: “Se fizermos isso, o mundo que conhecemos estará morto. E este novo mundo é feio, é bruto. É um mundo em que eu não quero viver. E acho que vocês também não.”
Esse vírus chegou no nosso país por meio das pessoas ricas, mas já sabemos que o maior impacto será, como de costume, entre as pessoas mais pobres.
O ministro da saúde ontem disse que prevê o colapso do sistema de saúde no final de abril e definiu o colapso como “O colapso é quando você pode ter o dinheiro, ter o plano de saúde e a ordem judicial, mas simplesmente não há o sistema para se tratar”.
E ficou para mim que só é colapso quando alguém que tem dinheiro, plano de saúde ou acesso à justiça não encontra tratamento. Gente pobre parindo no saguão ou aguardando atendimento deitado no chão do corredor do hospital não é colapso.
Em Mongaguá, diante da suspensão das visitas e saídas, centenas de pessoas fugiram do presídio, que já se encontrava em situação calamitosa antes mesmo das restrições impostas devido à epidemia do covid-19.
A notícia que tenho, de uma amiga que mora nessa cidade, é a de que a recaptura ocorreu, como de costume com relação a tudo o que envolve o cárcere neste país, com muito abuso.
O exército está se preparando para ir às ruas para fazer cumprir a quarentena. Garantirá, também, a distribuição de recursos, víveres, para que todas as pessoas possam sobreviver mesmo na quarentena? Ou apenas que elas tenham mais medo de buscar o acesso do que de passar fome em casa?
Qual será o objetivo do uso da força?
Este é um momento decisivo para a nossa sociedade. A suspensão de tantos aspectos culturais abre espaço para o questionamento de coisas sempre tidas como naturais e nunca revistas. Abre espaço para falarmos sobre renda mínima, saúde universal, coletividade.
Essa epidemia, terrível como vem sendo, pode nos distanciar ainda mais em decorrência de tudo o que temos de diferença… ou finalmente nos unir em torno de tudo o que temos em comum.
Só precisamos cuidar para que o nosso medo não nos prive da nossa humanidade.